Acervo Imediato

#paratodesverem - acessível para pessoas com deficiência visual​

Exposição artística virtual

Nas espirais do tempo, passado, presente e futuro conformam uma dança circular, na qual coreografam um movimento contínuo e permanente de transformação e emaranhamento. Expandindo-se para além de uma cronologia linear, as diferentes dimensões de uma temporalidade espiralada se entrelaçam e manifestam a vida em sua transcorrência e fluidez. Imprevisível. Fugaz. Perene. Nas espirais do tempo, tudo vai e tudo volta, disse Leda Maria Martins, pois o que flui no movimento cíclico permanece no movimento. Nessa cosmopercepção africana do tempo, o passado é guardião de um saber que inspira o presente e o futuro, assim como encontra-se emprenhado do tempo que há de vir. O presente recria e atualiza o movimento ancestral enquanto funda as bases para futuros imaginados. E a este, o futuro, reservamos o direito ao imprevisível, chamando-o de espaço de criação. Dito isso, do que é feito um acervo imediato?

A exposição Acervo Imediato é resultado de uma travessia coletiva. Ao instaurar uma pergunta, sem nenhuma intenção de obter respostas estanques, o projeto lançou uma flecha no tempo em direção a um futuro onde a experiência negra seja narrada e representada em primeira pessoa, anunciando o desejo de alterar a ordem do que se chama verdade no eixo presente-futuro. No entanto, Morena Mariah nos lembra que é no presente que a gente troca e constrói, sonha e cria nossas futuridades, e quem senão a arte para tecer os gestos que transformam imagens em imaginários? Safira Moreira, Jamile Cazumbá e Shai Andrade são as artistas convidadas para dar forma à provocação “como criar memórias do presente?”. Três mulheres negras em intensa imersão criativa, atravessadas pelo contexto pandêmico, escavando seus acervos pessoais e memórias cotidianas e conectadas pelas camadas desveladas de trauma, transe e cura. 

Em uma série de fotografias garimpadas em feiras de rua do Rio de Janeiro, Safira Moreira intervém e manifesta o invisível. Encarando a história indigesta, traz à superfície os “fantasmas do presente”, o trauma colonial que costura as relações raciais no Brasil, e põe à prova o não-registro ao soterrar a brancura em sua dívida impagável e evidenciar a negrura historicamente apagada, nos encorajando a reagir ao assombro. É que para lidar com o trauma, é preciso enxergá-lo, conceber a dor em sua antibeleza e transmutá-la. Como Jamile Cazumbá faz em “Um transe de dez milésimos de segundos”. Entre a fuga e a travessia, o corpo em transe se expande em direção às possibilidades de existência, percorrendo em si linguagens-trajetos. Quais são elas? A cabeça propõe caminho entre Orun e Aiyê e assim imergimos na névoa das miragens e das memórias. Rotas de fuga trançadas nas curvas dos destinos colocam em trânsito aquela que encontra na voz ancestral o próprio caminho. Oráculo. O que a memória guardada pelas nossas mais velhas têm a dizer? Shai Andrade captura e nomeia as histórias ao seu redor em memórias que revelam relações de mulheres negras como território fértil de afeto e autoconhecimento. Em seu “Tarot de Memórias” Shai Andrade recompõe a circularidade do tempo ao materializar as reverberações do passado no corpo consulente presente, em busca de orientações para a designação do próprio futuro. 

A exposição Acervo Imediato pretende, assim, seguir provocando a inquietação necessária para que pessoas negras busquem se apropriar das suas memórias, das suas narrativas, das suas histórias. Como nos disse Tiganá Santana, não se trata de uma memória acumulativa, patrimonial, patriarcal. Trata-se de uma memória que dança. Que dancem, então!

Stéfane Souto e Nathália Procópio 

Denda Coletiva

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